Apesar da renda mais alta que a média nacional, o brasiliense ainda encara dificuldade em adquirir domicílio próprio. O problema se aprofunda a partir das moradias irregulares que existem no território desde sua fundação
Apenas 46% dos moradores do Distrito Federal possuem casa própria. É o que revela dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O percentual é 17% menor do que a média nacional. A situação contrasta com a renda domiciliar do brasiliense, que é a maior do país. A dificuldade em obter a moradia se reflete no aumento das tentativas de invasões de áreas públicas e, consequentemente, no número de derrubadas realizadas pelo Governo do Distrito Federal (GDF).
De acordo com levantamento do IBGE, em 2022, a capital federal possui pouco mais de 1 milhão de unidades habitacionais. Os dados são do Censo e também incluem as residências que estão em áreas irregulares, ainda segundo o instituto. Dentre as dificuldades de manter uma moradia, os brasilienses citam o aluguel como o fator que mais tem impacto no orçamento mensal. É o que expõe a vendedora Bianca Soares, de 21 anos, que hoje arca com as despesas de uma casa alugada em Taguatinga, onde vive com o marido. “O aluguel dobrou de valor, e como a casa é maior que o apartamento, as contas de água e energia aumentaram também”, cita ela, que, antes, dividia um apartamento. Bianca ainda não tem planejamento financeiro para conseguir uma casa própria, mas pretende adotar algum método no futuro.
Por outro lado, Layane Vasco, 27, tenta reservar um mínimo de R$ 200 todos os meses para dar entrada em algum imóvel. Ela adotou o método desde abril deste ano. A moradora de Vicente Pires divide aluguel com o irmão mais novo, Lucas, mas como o rapaz só recebe bolsa-estágio, o estudante é responsável apenas por 40% das contas. “Com relação à montagem da casa, dos móveis, de tudo, fui eu quem comecei sozinha e sem ajuda”, conta.
Antes da mudança do colega de apartamento, Layane morou sozinha por cerca de um ano e meio. Apesar das despesas não terem mudado tanto, o familiar ajuda a manter os afazeres diários no cuidado com a moradia. “A questão da companhia foi fundamental, pois, acaba que a gente fica muito tempo só trabalhando e quando chega em casa não tem mais disposição. Com a presença do Lucas, eu tenho mais disposição para as coisas de casa”, explica.
Números mascarados
Para explicar esse desacordo entre o baixo índice de moradia própria e o alto valor médio de renda no DF, o economista Francisco Rodrigues destaca que a grande massa de empregados no DF está nos serviços públicos. “Em alguns casos, esses servidores, que estão nas agências reguladoras, nas autarquias e ministérios, chegam a ter um ganho mensal de até R$ 30 mil ou mais. Isso faz com que a renda per capita vá lá para cima, pois o forte de Brasília não são as indústrias, as fábricas ou a agropecuárias, mas sim a prestação de serviços públicos”, destaca.
O educador financeiro cita o cálculo feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o qual indica que o salário mínimo ideal no Brasil deveria ser R$ 6.280,93. Na prática, os brasileiros arcam com despesas domésticas, utilizando a remuneração mínima de R$ 1.320, o que é um problema, de acordo com a análise de Francisco, “uma vez que a maior parte da demanda habitacional para os próximos anos está em famílias que recebem de um a três salários mínimos”.
Para o especialista, o país, incluindo o DF, apresenta profunda carência de infraestrutura entre as regiões. “Aí temos as causas da desigualdade habitacional: a falta de políticas públicas; o êxodo rural nas últimas décadas; o aumento da população urbana em condições precárias nas periferias e a exclusão social pelo aumento do desemprego, entre 2020 e 2021”, destrincha Rodrigues.
Irregularidade
A dificuldade em adquirir uma casa própria no DF também é materializada nas moradias irregulares que se espalham por todo o território. Foram 650 operações para derrubar construções ilegais, promovidas neste ano pela Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística (DF Legal). A maioria delas ocorreu em áreas do Setor Habitacional Vicente Pires.
Cerca de 90% dos imóveis construídos no Trecho 2 podem passar por processo de regularização. De acordo com o GDF, não existe relação entre as operações de derrubada e as regularizações. São quase 900 pessoas ocupando imóveis ainda sem licitação, de acordo com a Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap). Em contrapartida, a Associação de moradores de Vicente Pires e região (Amovipe) encaminhou ao poder público três ações para anular o processo de regularização.
Para o presidente da organização, Gilberto Camargos, a ação conduzida pela Terracap contraria as normativas da Lei nº 13.465, artigo 16. “A regularização deve ser feita levando em consideração o valor da terra nua, sem nenhuma benfeitoria que tenha trazido valorização. Tira asfaltamento, rede de água, energia e viadutos que entram em Vicente Pires. A terra ainda sem nenhuma rua é como deve ser cobrado”, avalia.
Camargos também defende que boa parte dos moradores cadastrados para receber a regularização de imóvel não terão condições de arcar com os custos demandados pela mudança. “A Terracap está cobrando um valor muito elevado”, reclama.
Grilagem
“Brasília já nasce com terras supervalorizadas”, explica o professor de urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo. Segundo ele, antes mesmo de se tornar realidade, fazendeiros e empresários goianos elevaram muito os preços das terras que, no futuro, viriam a ser o DF e o Entorno. “O planejamento governamental mal satisfazia a faixa de 100 a 200 mil pessoas. A demanda por habitar Brasília era bem maior e o governo sempre foi muito limitado na sua oferta de crescimento urbano. O que acontece é que, desde o começo, floresceu aqui a lei do mais fraco, que é a lei do grileiro”, discorre.
Flósculo define o grileiro como um oportunista, que permite o acesso à terra de forma irregular para uma multidão de pessoas humildes e, assim, eventualmente fica rico. “O grileiro sempre assediou Brasília. Existe um crescimento populacional e uma viabilização da habitação que se dá, sobretudo, à grilagem. Nós estamos chegando a quase 1 milhão de brasilienses que, de uma forma direta ou indireta, tiveram oportunidades de habitar pelas mãos dos grileiros”, observa o professor.
O urbanista acrescenta que ainda não se tem dimensão do quão profunda é a influência da grilagem no desenvolvimento da capital. “Eles se tornaram senhores de um grande número de propriedades. Existe um capital imobiliário crescente da grilagem, que domina o Distrito Federal. Há um vazio de informações gigantesco devido à irregularidade, e o povo mais humilde vai nessa, porque são oferecidos lotes a um preço totalmente acessível em comparação ao governo”, conclui.
A DF Legal informou que realizou 674 operações de desobstrução de área pública entre janeiro e outubro deste ano, resultando em 8.684.710m² desobstruídos. A área é maior do que a desocupada em todo o ano de 2022, quando foram 790 operações e 2.484.819m² desobstruídos.