O clima de revolta dos estudantes da Universidade de Brasília (UnB) era incontestável na manhã de 3 de abril de 2008. Em janeiro daquele ano, o reitor Timothy Martin Mulholland havia sido denunciado pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) sob a alegação de usar recursos do Fundo de Apoio Institucional à Universidade de Brasília para adquirir um luxuoso carro e decorar o imóvel funcional em que morava na época, na Asa Norte. A situação mais emblemática foi a compra das chamadas “lixeiras de ouro”. O apelido áurico é devido ao fato de que a peça custava R$ 1.000.
Quando a denúncia surgiu, os alunos estavam em período de férias, mas o novo Diretório Central dos Estudantes (DCE), formado pela chapa Nada Será como Antes – eleita em novembro do ano anterior com 1.910 dos 4.148 votos –, seguiu pelos próximos meses atiçando os ânimos do corpo estudantil. Novas acusações começaram a surgir, o que não deixou a poeira baixar. Os dirigentes da instituição eram apontados em casos que envolviam recursos de fundações, especialmente da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), que deveriam ser destinados a pesquisas, mas estavam sendo desviados para a aquisição de bens de luxo, em suposto esquema.
Em 12 de março, alunos fizeram a primeira manifestação contra o reitor. A passeata seguiu até o gabinete do dirigente máximo da UnB, mas os jovens não foram recebidos por ele. Timothy não tinha uma boa relação com os discentes, e o clima esquentava a cada dia. Em 3 de abril, a assembleia estudantil marcada para aquela quinta-feira, às 12h, na Ala Norte do Instituto Central de Ciências (ICC) – também conhecido como Minhocão –, teria um desfecho diferente.
Carregando um caixão e com cartazes exigindo a demissão de Timothy, cerca de 100 estudantes caminharam por 600 metros do local da assembleia até o prédio da reitoria. Ao subirem as rampas projetadas por Oscar Niemeyer ainda no processo de construção de Brasília, os manifestantes identificaram fragilidade na segurança e decidiram ocupar o edifício.
“Quando a gente ocupou, ficou todo mundo meio perplexo, sem saber o que aconteceria até então. E aí um aluno, um calouro da medicina, perguntou: ‘E agora, o que a gente faz?’. Foi o momento em que eu subi numa cadeira e falei: ‘Bom, galera, agora a gente fica aqui e só sai quando o reitor sair’”, lembrou Luiza Oliveira, uma das manifestantes mais ativas na ocupação. Aos 18 anos, a jovem tinha cabelo vermelho e estava no 5º semestre do curso de ciências sociais. Atualmente, aos 34 anos, ela é professora de sociologia da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
A ocupação durou 15 dias e resultou no afastamento do reitor, do vice-reitor e dos dirigentes da instituição. A nova eleição teve voto paritário pela primeira vez, e tantos os votos dos estudantes quanto os dos professores tiveram o mesmo peso. O Ministério da Educação e o Ministério de Ciência e Tecnologia mudaram as regras para liberar recursos às fundações educacionais em todo o país. Ainda durante a ocupação, a Portaria Interministerial MEC/MCT nº 475, de 14 de abril de 2008, exigiu mais transparência dos repasses. Com a desocupação em 18 de abril, como o nome da chapa já adiantava: nada mais foi como antes.
Após 15 anos da marcante data, o Metrópoles conversou com os principais personagens da ocupação, teve acesso às 246 páginas do processo movido pela universidade para remover os estudantes – que tramitou na 17ª Vara Federal –, revisitou as matérias disponíveis no Centro de Documentação (Cedoc) do Jornal de Brasília e fez contatos com jornalistas que acamparam “junto” aos estudantes no prédio da reitoria à espera de um desfecho da história de um dia que durou uma quinzena.
Quando os estudantes ocuparam o prédio da reitoria às 14h, a reação da universidade foi quase imediata. Às 16h30, a luz e a água foram cortadas. O objetivo, segundo quem esteve no local, era “vencer os estudantes pelo cansaço”. Começaram os boatos de que a Polícia Federal poderia invadir a qualquer momento. “Quando houve esse corte de energia e da água, foi logo no início e foi muito tenso”, lembra Luiza. Os ocupantes montaram barricadas em frente ao prédio e começaram a dividir tarefas.
A pauta prioritária era a saída do reitor e dos dirigentes da universidade. Desde o início, a assessoria do reitor anunciava que Timothy não renunciaria.
“A gente se organizou em comissões: tinha uma comissão da logística para ver a questão de alimentação e outras questões operacionais; tinha uma comissão de comunicação – e, inclusive, a gente colocou uma rádio dentro da reitoria. Foi bem bacana, porque contava o dia a dia da ocupação. E tinha comissão de negociação, da segurança, enfim, várias comissões”, detalha Luiza.
Os estudantes também proibiram acesso à reitoria da UnB. “Tomamos muito cuidado de garantir que tivesse uma organização mínima, que a gente não quebrasse as coisas”, pontua. O zelo não era à toa. Em 2007, alunos da Universidade de São Paulo (USP) ocuparam a reitoria da universidade por 51 dias em protestos contra ações do governador José Serra, mas foi enfatizada a depredação após os manifestantes saírem do local. “Para gente, era uma coisa importante garantir que todo o patrimônio estivesse ali bem protegido”, acrescenta.
A fim de garantir a alimentação, os estudantes utilizaram caixa amarrada a uma corda para transportar mantimentos a partir da janela do gabinete da reitoria.
“Ali se mostrou uma diferença muito grande, porque os pais de estudantes que moravam no Plano Piloto rapidamente deram jeito de levar roupa, de levar colchão pra dormir lá, barraca. Já os pais dos estudantes que moravam mais longe e não tinham carro, acabavam sem condições de deixar o trabalho pra ir, penaram mais.” Era o caso de Luiza, que morava em Planaltina, e passou os primeiros dias da ocupação dormindo em uma cadeira.
Às 11h30 de sexta-feira, 4 de abril de 2008, a Fundação da Universidade de Brasília deu entrada no pedido de reintegração de posse. O Processo nº 2008.34.00.010500-5 solicitava liminar para reintegração imediata de posse da sede da reitoria com a participação da Polícia Federal, sob o argumento de interrupção do serviço público.
A fundação também queria cobrar multa no valor de R$ 5 mil por hora de atraso no descumprimento da decisão. No mesmo dia, a juíza substituta Cristiane Pederzolli Rentzsch, da 17ª Vara Federal, expediu mandado de reintegração de posse urgente, aceitando todos os termos do processo.
Além da decisão, a juíza anexou ofício à Polícia Federal e à Polícia Militar do DF para que os estudantes fossem retirados em até 24 horas. Os alunos ignoraram a determinação da Justiça, e o clima ficou cada vez mais tenso.
No sábado, 5 de abril, os seguranças da Universidade de Brasília isolaram o prédio. Parlamentares, como o então senador Cristovam Buarque e o então deputado Augusto Carvalho, foram ao local conversar com os manifestantes e tentar mediar a situação.
Enquanto o clima esquentava em frente ao prédio, outras ações aconteciam nos bastidores do Judiciário. O Departamento de Polícia Federal enviara um ofício à juíza alegando que não seria possível o cumprimento de ação conjunta nas 24 horas determinadas sem o apoio da Secretaria de Segurança Pública do DF, conforme consta no processo de reintegração de posse. No texto, também ficara reforçado que só seria possível atender à decisão da polícia local caso o Ministério da Justiça fizesse tal solicitação ao então governador José Roberto Arruda.
A Secretaria de Segurança Pública do DF, comandada à época sob pelo general Cândido Vargas, também enviou ofício informando que só agiria sob ordens do chefe do Executivo local e após solicitação do ministério.
Arte/Metrópoles
Às 15h59, com as respostas contrárias ao cumprimento imediato, a juíza Cristiane Pederzolli Rentzsch despachou exigindo que se oficiasse com urgência o ministério sobre suas decisões.
Enquanto o reitor não conseguia o apoio das forças de segurança, os parlamentares negociavam o restabelecimento da luz e da água.
No meio do caos, os estudantes perceberam que precisavam se organizar. Além da divisão em comissões, entenderam que havia a necessidade de se comunicar com o “mundo exterior”.
“A gente tem que lembrar que eram outros tempos. Hoje em dia, a gente resolveria tudo com o celular, faria uma live. Naquela época, isso não existia”, destaca o cientista político Rafael Barroso. Ele era do Conselho Acadêmico de Ciência Política e um dos ocupantes da reitoria. Com um modem dele, um computador do irmão e outro de um amigo, montou um blog para contar o que se passava na ocupação.
“Na época, o blog era o que tinha de mais rápido na comunicação, e também montamos uma rádio, com o nome ‘5 mil por hora’, que era o valor da multa que o juiz havia estipulado para nós”, comenta o cientista. Dessa forma, conseguiram explicar os bastidores da ocupação, passar os “gritos de guerra” e o nível de pressão no movimento.
“A gente tinha uma plataforma que permitia que a gente subisse um sinal de áudio em tempo real. Era a coisa mais rápida que a gente conseguia ali para atualizar as informações da ocupação. E tinha muita gente querendo saber. Na verdade, o Brasil inteiro estava olhando para esses materiais”, completa.
As estratégias deram visibilidade ao movimento. Interessados podiam acompanhar as notícias diretamente pelos estudantes, novidade para aquele momento. A cada segundo, a organização se destacava e chamava ainda mais a atenção.
Às 23h de 5 de abril, a desembargadora federal Assusete Magalhães decidiu contra a decisão da 17ª Vara Federal e alegou que não existiam, nos autos, provas que sustentavam a ordem de reintegração de posse, “não podendo as decisões judiciais fundamentarem-se, exclusivamente, em matérias jornalísticas”.
Em sua decisão, a desembargadora ainda reforçou que seria ilegítima a reintegração de posse da FUB, uma vez que o endereço da fundação nos Correios indicava que estava situada na Galeria dos Estados, e não no edifício da reitoria.
Assusete Magalhães destacou ainda que a interrupção do serviço público se deu pelo fato de a reitoria ordenar o corte de fornecimento de água e energia para o prédio, a fim de “simular um suposto esbulho”. E reforçou que a 17ª Vara não tinha competência para determinar o uso da força policial.
“Cabe à Polícia Federal exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União; que o comando da Polícia Militar do Distrito Federal reconheceu sua ilegitimidade para dar cumprimento ao mencionado mandado de reintegração de posse, por se tratar Campus da UnB de área federal”, assinalou a desembargadora.
A decisão enfraqueceu juridicamente o processo de reintegração de posse e deu aos estudantes certo respaldo. Após quatro dias de ocupação, na segunda-feira, 7 de abril, os manifestantes fizeram nova assembleia. Além dos alunos que invadiram a reitoria, outros se apresentaram para apoiar o movimento e exigir a saída do reitor. A estimativa do DCE da época é de que cerca de mil discentes teriam comparecido à reunião.
A ocupação, que estava restrita ao gabinete do reitor, ganhou ânimo, e os estudantes conseguiram tomar posse de três andares do prédio. Houve registros de confrontos com os segurança, e a água e a luz foram novamente cortadas.
Em 8 de abril, o reitor Timothy Mulholland quebrou o silêncio pela primeira vez desde o início da ocupação. Em coletiva de imprensa, ele ressaltava que não renunciaria. No dia anterior, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios havia entrado com ação de improbidade administrativa contra o dirigente máximo da UnB e o decano de Administração, Paulo Weidle.
A coletiva foi feita no Centro de Excelência em Turismo. Quando estudantes souberam que o reitor estava na universidade, cercaram o prédio em protesto e voltaram a exigir a saída dele.
No mesmo dia, foi feita a primeira reunião de negociação da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF) com os estudantes, com presença do presidente da OAB, Cezar Brito, e do vice-presidente da OAB à época, Ibaneis Rocha, hoje governador do DF.
Arte/Metrópoles
Em 9 de abril, professores e servidores se juntaram aos alunos em protesto contra o reitor. Os funcionários, por conta própria, teriam religado o funcionamento da água e da luz.
No dia seguinte, Timothy enviou comunicado informando que se afastaria do cargo por 60 dias. No lugar dele, ficaria o vice-reitor da instituição, Edgar Mamiya. Os estudantes comemoraram a saída de Mulholland, mas continuaram com a manifestação e passaram a pedir a saída de Mamiya e a demissão definitiva do reitor.
O clima era insustentável para a reitoria, e o movimento cada vez ganhava mais força. A comunidade começou a doar água e comida aos estudantes. Os próximos capítulos do protesto foram marcados por renúncias. Em 11 de abril, caiu Weidle, o decano de Administração. No dia seguinte, Mamiya também renunciou.
A pauta se tornava cada vez mais política, e no domingo, 13 de abril, o então ministro da Educação, Fernando Haddad, reuniu-se com membros da comunidade acadêmica da UnB e integrantes do MEC.
Arte/Metrópoles
No encontro, Haddad teria recebido telefonema de Timothy comunicando o afastamento definitivo do cargo. Com a queda do reitor e do vice-reitor, caíram também, automaticamente, os decanos de Ensino de Graduação, Pesquisa e Pós-graduação e Extensão de Assuntos comunitários.
A reunião com o MEC foi então usada para decidir as regras de escolha de um reitor pro tempore (temporário). De bermuda, chinelo e blusa com a frase “pede para sair”, o presidente do DCE se encontrou com o ministro. Aos 22 anos, o então estudante de serviço social Fábio Felix negociava as demais pautas dos estudantes. Até então, eram 18 reivindicações, sendo a queda dos dirigentes o principal pedido.
“A gente foi chamado num domingo de manhã para uma reunião no Ministério da Educação”, lembra Fábio Felix. Atualmente, ele ocupa as páginas políticas do Distrito Federal e é o deputado distrital mais votado da história. Mesmo membro importante do DCE, Felix conta que as decisões não eram somente do diretório. Dessa forma, teria ficado acertado com o então ministro Haddad que os pontos seriam debatidos em assembleia.
“A sinalização era de que ele [Timothy] sairia, que toda a gestão sairia e que, em pouco dias, um Conselho Universitário elegeria uma gestão pro tempore, que ficaria por um período, uma gestão interina que ficaria por um período até a eleição”, lembra Felix.
O objetivo do grupo era garantir o mesmo peso nos votos dos professores e dos estudantes nas escolhas dos dirigentes.
“A gente saiu com uma série de garantias, e toda a gestão do Timothy caiu, toda a gestão, e o conselho elegeu um grupo de trabalho para rever a atuação via fundações de apoio, que era a crise de corrupção”, acrescenta.
Em 14 de abril, o reitor Timothy formalizou a saída do cargo mais importante de sua carreira. Uma carta na íntegra foi publicada em todos jornais da época que faziam a cobertura do caso. No texto, Timothy ressalta a carreira. Leia abaixo:
“Sr. Ministro,
Como é do seu conhecimento, os acontecimentos recentes na Universidade de Brasília em muito dificultaram o andamento normal da instituição. Como muitos outros colegas, vejo com tristeza a universidade a qual sirvo como professor há 32 anos ter as suas atividades interrompidas em um momento tão importante, quando projetos da maior importância para a UnB e para o país estão em pleno andamento, com vigor e ânimo.
Refiro-me particularmente às propostas de democratização do ensino superior apresentadas pelo Governo Federal , que a UnB e a sua atual administração souberam entender e incorporar como suas.
Como Vossa Excelência bem sabe, a UnB encampou com entusiasmo as iniciativas do Presidente da República para a universidade, tais como a expansão de oferta do ensino superior, a Universidade Aberta do Brasil, o Reuni, as obras nos diversos campi. Tenho orgulho de ter sido o vetor da sua materialização no Distrito Federal.
É em nome da continuidade desses projetos, que são maiores do que uma administração, Sr. Ministro, que renuncio, nesta data, ao cargo de Reitor da Universidade de Brasília, que honrei desde o primeiro momento em que exerci e que constitui na maior honra a que pode almejar um professor da nossa universidade.
Faço-o, Sr. Ministro, porque entendo que a minha presença à frente da Administração Superior da Universidade de Brasília pode comprometer estes importantes projetos do Governo Federal e da nossa universidade, que assumi como meus e que tenho a convicção de que Vossa Excelência saberá conduzir com sabedoria e serenidade.
Deixo o cargo de Reitor, Sr. Ministro, com a certeza de ter cumprido com o meu dever de professor, cidadão e servidor público, na defesa dos maiores interesses da minha universidade e do meu país. Deixo o cargo de Reitor com a certeza e a tranquilidade de que a verdade prevalecerá no que tange a acusações que foram feitas contra mim e contra a minha administração.
Deixo o cargo de Reitor com a certeza de que Vossa Excelência compartilha dos ideais do fortalecimento da universidade pública para todos, independentemente de raça, credo e posição social, nos termos da Constituição Federal que inspiraram o meu trabalho ao longo da minha vida acadêmica. Ao agradecer o apoio que sempre dispensou durante o tempo em que exerci o cargo, de Reitor da Universidade de Brasília, solicito deferimento e me coloco à sua disposição.
Brasília, 14 de abril de 2008.
Timothy Martin Mulholland*
* Publicada na íntegra pela agência estatal Empresa Brasileira de Comunicação (EBC)”
No mesmo dia, os ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia publicaram mudança no regramento das fundações em todo o país. A portaria segue vigente e obriga que as entidades contratem serviços por meio de licitações e que as contas sejam abertas para dar mais transparência aos gastos públicos.
Em 15 de abril, o Ministério da Educação anunciou o jurista Roberto Aguiar como o reitor pro tempore, para gerir a UnB durante 180 dias. O Metrópoles teve acesso à ata da votação. Aguiar foi eleito com 40 votos. Os demais candidatos ao cargo eram: Lourdes Bandeira, 31 votos; Gileno Marcelino, 24; Erasto Fortes,19; Joaquim Andrade, 12; e Antônio Cleves Nunes de Oliveira, 5.
A votação contou com duas abstenções, as de Fábio e Luiza – entrevistados na reportagem.
Na declaração do voto, eles explicaram que se abstiveram porque “achavam mais importante definir os critérios antes da escolha dos nomes”, conforme consta em ata. “A gente tinha um certo receio”, diz Fábio. “O Aguiar era um pouco ‘ensaboado’, então, respondia, mas sem cravar mesmo, saindo pela tangente. Nós estávamos saindo de um movimento grande, tínhamos dúvidas”, completa.
Antes da votação, a professora Márcia Abrahão sugeriu que os candidatos se apresentassem. Conselheira na época, atualmente ela é a reitora da Universidade de Brasília – a primeira mulher a assumir o cargo. Márcia foi eleita pelo voto paritário, conforme defendiam os estudantes.
Sem conseguir entrar no gabinete em seu primeiro dia de trabalho, o novo reitor reuniu-se com os estudantes às 11h de 16 de abril. O encontro durou até as 14h30, e os manifestantes apresentaram as reivindicações para negociar a desocupação.
Aguiar concordou em ouvir as demandas e debater com o movimento estudantil. Naquele dia, iniciava o fim de uma das mais emblemáticas reações de estudantes. A previsão era que, em 48 horas, a situação do campus voltaria à normalidade.
Ao meio-dia de 18 de abril, a reitoria começou a ser desocupada. “Eu perdi seis quilos naquela ocupação”, declara Fábio Felix. “É um negócio desgastante politicamente, pessoalmente, e é uma entrega você coordenar um processo como esse”, acrescenta.
Mas nem tudo foram flores: a imagem da chapa do DCE ficou marcada, para alguns, como radical. No ano seguinte, a Nada Será como Antes ficou em penúltimo lugar nas eleições, com 1.047 votos de um total de 4.654. A chapa vencedora foi a número 3, com 1.877 votos. Os integrantes também tinham participado do movimento de ocupação em 2008. O coordenador-geral eleito era Rafael Barroso, que na ocupação usou modem e notebook para estabelecer comunicação de rádio. “Era um movimento heterogêneo”, destaca Rafael. “A gente não concordava em muitas pautas, mas na hora que sentamos ali na roda, às vezes sem luz, conversamos.”
O repórter Raphael Veleda era recém-formado quando pediram para ele fazer a última matéria do dia: acompanhar a assembleia dos estudantes e escrever por volta de três ou quatro parágrafos sobre o assunto. “Era na hora do almoço. E eu me lembro de ter sido pautado porque estava na hora do almoço e ninguém mais queria fazer isso. E eu já tinha entrado de manhã”, relata.
A assembleia teve início, e o jovem Veleda foi acompanhando a manifestação até a porta da reitoria, quando de repente os estudantes invadiram e ocuparam o gabinete. Vendo o que estava acontecendo, o repórter, então colaborador do Correio Braziliense, entrou com a multidão e passou a primeira noite na ocupação.
“Você olha para aquilo ali e fala: ‘Como que eu vou avisar os editores?’. O jornalismo em tempo real que temos hoje não existia, era muito diferente. Não havia WhatsApp, mas tinha ligação por celular, né? Eu estava com meu celular, e aí liguei para o meu chefe na mesma hora e contei”, detalha. “Não tinha como carregar, não, não tinha ninguém, ninguém andava com carregador de celular. Era muito raro”, conta Veleda, hoje repórter de política do Metrópoles.
E o que não pareceria uma grande notícia virou a capa do dia seguinte e o fato mais relevante do jornalismo local pelas próximas duas semanas. A ocupação só disputava as capas com os desdobramentos do assassinato de Isabella Nardoni, que ocorreu em 29 de março daquele ano. As investigações do infanticídio seguiram em foco mesmo após a prisão preventiva do pai e da madrasta da criança, em 7 de maio de 2008.
“A gente fazia uma cobertura diária, e eles ficaram por muitos dias na reitoria. E tinha a imprensa, sempre. A imprensa passava a noite lá embaixo. Mas, nesse primeiro dia, no dia da ocupação, a gente estava lá, eu e a fotógrafa, e a gente entrou junto com eles. Não tinha uma organização nesse primeiro momento, e sentamos lá, ficamos na reitoria”, descreve o jornalista.
A madrugada foi conturbada, o clima era de tensão e havia o medo de a polícia entrar no local. A ocupação era uma novidade para todo mundo naquele dia. “Eu cochilei em poucos momentos. Foi uma noite muito tensa, porque tinha barulho, tinha o medo de que acontecesse alguma coisa, não tinha onde deitar. Então eu cochilei encostado na minha companheira de reportagem, a fotógrafa, um encostado nas costas do outro.”
“Vale destacar que 2008 foi um ponto de mudança para a universidade”, reforça Rafael Barroso. “A nossa demanda por mais democracia interna, por mais participação dos estudantes e, principalmente, mais transparência nas fundações era uma luta que fazia todo o sentido na época. E continua fazendo todo o sentido”, complementa.
Os estudantes organizaram 18 reivindicações na época – a maioria foi aceita e implantada. Atualmente, há paridade para eleição de reitor e vice-reitor, que é organizada pelos sindicatos e pelo DCE.
De acordo com a Universidade de Brasília, na eleição de reitor, a consulta é realizada pelas entidades representativas dos segmentos: Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (AdUnB), Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Universidade de Brasília (Sintfub) e Diretório Central dos Estudantes Honestino Guimarães (DCE).
Após a consulta, o Conselho Universitário elabora lista tríplice, que é encaminhada para o presidente da República, conforme determinam a lei e o decreto que regem a nomeação de reitores.
Está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei que acaba com a lista tríplice para a escolha de reitores. O projeto é apoiado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes), que representa todas as universidades federais do país, atualmente presidida pela reitora Márcia Abrahão.
Em relação aos demais cargos eletivos da universidade, a UnB informou que os conselhos superiores são as instâncias deliberativas máximas da Universidade de Brasília. São órgãos colegiados, com representação de três segmentos (estudantes, técnicos-administrativos e docentes): Conselho Universitário (Consuni), Conselho de Administração (CAD) e Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe).
Outra reivindicação dos estudantes era em relação às contas abertas das fundações. Em nota, a UnB informou que, desde 2010, os Conselhos Universitários das universidades têm de analisar e aprovar as contas das instituições candidatas ao credenciamento e recredenciamento como fundações de apoio.
As contas das fundações de apoio também são fiscalizadas pelo Ministério Público da unidade da Federação em que estão localizadas. No caso do DF, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
Mais um ponto exigido pelos estudantes era a abertura de concurso público para professores na universidade. Em 2008, ano da ocupação, e nos dois anos seguintes, a UnB nomeou 832 professores universitários e 712 técnicos administrativos. Veja o balanço:
Os estudantes pediram para que o valor das bolsas de pesquisa e extensão fosse equivalente ao salário mínimo. Quinze anos depois, o pedido não foi atendido. Atualmente, a bolsa de extensão é de R$ 700, e o salário mínimo, R$ 1.320.
A UnB informou que as bolsas de pesquisa variam de acordo com múltiplos critérios, conforme o regulamento disponível neste link.
Os alunos pediram, em 2008, a construção do Restaurante Universitário no campus de Planaltina. Em 2011, o RU foi entregue. Em relação aos prédios de moradia estudantil, em 2014 foi construído um bloco para residência dos estudantes da Licenciatura em Educação do Campo, no campus de Planaltina, apenas.
Em 2008, não havia prédios nos campi de Ceilândia, Gama e Planaltina. Nos últimos 15 anos, as unidades de Ceilândia e Gama têm três blocos cada, e a de Planaltina conta com dois blocos.
Outra reivindicação dos estudantes era o intercampi: um ônibus que fizesse o transporte gratuito dos alunos entre os campi. De acordo com a Universidade de Brasília, o modelo foi criado em 2008, após a ocupação.
Atualmente, o serviço não existe mais. A universidade explicou que o estudante tem condições de completar todo o seu curso sem precisar se deslocar para outros campi.
Em nota, a universidade ainda ressaltou que é recomendado usufruir do passe livre estudantil, que é o benefício da gratuidade do transporte público. É um direito assegurado a todo estudante regularmente matriculado em instituições públicas ou privadas de ensino infantil, básico e superior.
Timothy Mulholland foi um professor respeitado dentro da universidade. Antes dos escândalos, em 2006, ganhou os títulos de cidadão honorário de Brasília, concedido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, e de Parceiro da Segurança Pública, outorgado pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Governo do Distrito Federal.
No ano seguinte à ocupação, em 2009, Timothy retornou à Universidade de Brasília como professor. O processo para que saísse do quadro de docente concursado docente foi longo. Somente em 2015 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a demissão do ex-reitor pelo Ministério da Educação.
Timothy recorreu, mas em 2019 a Advocacia-Geral da União (AGU) confirmou a regularidade da demissão após investigações apontarem desvios de recursos repassados pela Universidade de Brasília.
Philippe Bucher
A gestão tumultuosa de Timothy foi envolvida em diversos processos. Em 2011, ele chegou a ser absolvido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) quanto à decoração do apartamento. Uma outra ação ainda está em trâmite no TRF – os autos versam sobre a má gestão de recursos referente à aquisição de oito canetas Mont Blanc, ao custo de R$ 1 mil cada.
O recurso teria saído da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), abastecida com dinheiro público para cuidar da saúde de indígenas Xavante e Ianomami. Em 5 de fevereiro de 2018, no âmbito desse processo, o juiz Marcus Vinicius Reis condenou Timothy a prestar 1.460 horas de serviços à comunidade e a devolver R$ 20 mil aos cofres da fundação. Ainda há prazo para recurso.
Timothy chegou a ser processado pelo escritório de advogados que ficou responsável pela defesa do ex-reitor por 10 anos. O escritório alegou que Timothy não pagou pelos serviços advocatícios do caso e pediu a penhora de bens.
Em 2015, o STJ autorizou a demissão de Timothy da Universidade de Brasília – o ex-reitor já não assumia cargo de gestão desde 2008. A última atualização do currículo lattes dele foi em 2017, com a informação de que está aposentado.
Fora dos holofotes, Timothy está com 73 anos, segue lúcido e, de certa forma, ainda atuante. Em 29 de junho deste ano, ele participou da mesa-redonda “20 anos de Cotas na UnB: um campo em disputa”, que comentava o período de implantação da política de inclusão. A primeira do país. Timothy era vice-reitor na ocasião. Veja neste link a lista dos convidados.
Em sua página no YouTube, Timothy postou o vídeo da sua apresentação na mesa. O Metrópoles acionou os advogados do ex-reitor, mas o escritório informou que não comentava casos específicos. Também tentou contato direto com o próprio Timothy, pelas redes e por meio de familiares, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.